A VIDA É BELA

R. Davi Bogomoletz


 

 

Há quem diga que é comédia. Há quem diga que é farsa. Há quem diga que é uma negação da realidade. A meu ver, porém, é uma das mais belas lições que alguém poderia dar à humanidade sobre como é que se cuida de uma criança.

O autor não é psicanalista, nem pedagogo, nem pediatra, nem professor. O autor é um artista - um artista da comédia, portanto um palhaço.

Um palhaço de alta estirpe, diga-se de passagem. Ouvi dizer que Benigni sabe de cor a Divina Comédia, ou algo assim.
E foi da sua boca, ou de sua mão, ou de seu coração, que saiu essa obra prima de puericultura - o cultivo do homem em sua fase inicial de crescimento.

Arthur Dapieve diz em sua crítica ao filme, entre outras belas coisas, que o argumento foi tão genial, que o cineasta não foi capaz de realizá,lo à altura. Essa, porém, é a maior homenagem que lhe poderia ter sido prestada - a de que a genialidade de sua criação foi percebida, apesar de sua realização não o ter sido tanto.

Dapieve tem razão. Ele lembra também que, segundo Voltaire, quando não se pode rir, a coisa mais racional a fazer é matar-se.

Sim: O riso. Lembremo-nos do diabólico monge Jorge, personagem de "O Nome da Rosa" que, a pretexto de salvar a pureza do mundo de Deus, tentou assassinar o riso - e para tanto, também aqueles que rissem. Maior absurdo teológico que esse não poderia ter sido concebido jamais: O de que Deus abomina o riso. Pois o Paraíso era o que era justamente porque ali o prazer era ilimitado, não havia mal e não havia pecado e não havia pena nem lágrimas.

Que deus sizudo e cenhudo o teria inventado? Ao contrário - Deus vira bicho justamente porque o idiota do homem, em vez de curtir o Paraíso e seus infinitos prazeres, prefere tomar-se sério - pôr-se a pensar - e pensar sobre a diferença entre o Bem e o Mal. Ou seja, Deus se enfurece quando o homem se torna sério - e daí deduza-se o que Ele deve achar do riso.

Ao riso, então, toda a glória.

Portanto, "A Vida é Bela" é um filme sobre o riso. Benigni inventa a mais difícil das situações, o maior desafio para um homem que cultiva o humor. Como um homem assim enfrentaria uma situação em que homens como Walter Benjamin, Stefan Zweig, Primo Levi e tantos outros preferiram matar-se, já que não podiam rir? Como um homem assim enfrentaria uma situação que levou Adorno a dizer que, depois dela, fazer poesia seria um ato de barbárie? Como um homem assim
enfrentaria a situação que levou André Schwartz-Bart a escrever "O Último Justo"? Seria possível rir até mesmo no Lager? Seria possível rir diante da câmara de gás e do forno crematório?

Quem leu "Um Belo Domingo" e "A Escrita ou a Vida", de Jorge Semprun, sab que em Auschwitz não se ri. E esse é o depoimento de um não judeu, para tirar de vez o Holocausto do território exíguo e privado do povo judeu. Não faltou quem dissesse: "Deus morreu em Auschwitz". Mas a isso respondeu Elie Wiesel, com toda a razão: "Viver com Deus depois do Holocausto é difícil. Viver sem ele, impossível."

Mas o riso, sim, o riso morreu em Auschwitz, e isto é fato. Ninguém jamais o pôs em dúvida. No entanto, é preciso deixar claro que não foi apenas em defesa do riso e de sua sobrevivência que Benigni fez o filme. A meu ver, é fazer pouco do artista, e já sabemos que "o poema sabe mais que o poeta".

É verdade: O filme enfrenta cara a cara o mais terrível dos desafios: Teria sido possível rir em Auschwitz? Benigni conclui que não. Um retumbante, violento e definitivo Não. Porque no filme, uma vez no campo de concentração, o personagem nunca ri sozinho, como fazia antes. Nunca acha graça em nada, como vivia fazendo. O personagem não brinca mais com coisa alguma nem com ninguém - a não ser com seu filho e sua mulher. E percebe-se claramente que suas "brincadeiras" nunca surgem do fato de ele próprio estar achando graça em algo. Todas as brincadeiras têm um motivo e um destino: salvar a vida (e a alma, como lembra Dapieve, outra vez magistralmente) de um menino, um garotinho ainda na primeira infância que, mesmo sobrevivendo, jamais poderia enfrentar aquela situação sem enlouquecer ou deformar-se para sempre. (O "trauma", lembram-se?) E também salvar da desesperança a sua mulher, presa no campo ao lado.

Ele monta, então, um personagem. Para caracterizá-lo ele o faz um tanto impossível, mais para palhaço que para humorista. Não como Chaplin: As gags de Chaplin são sempre mais físicas que verbais (até por serem mudos os seus filmes). Guido, o personagem de Benigni, não é engraçado porque tropeça. Até quando tropeça a graça não está no tropeção em si, mas na "saída" que ele encontra para a situação. Portanto, o humor, no caso, é extremamente intelectivo. E inteligente. O Guido de "A Vida é Bela" lembra muito o humor de Groucho Marx, na forma, e o humor de Chaplin, no conteúdo. Chaplin é engraçado quando tropeça, Marx é engraçado quando se levanta. Chaplin é engraçado na ação, e Marx, na reação.

Claro que esta é uma simplificação, mas creio que se há diferença de forma entre Chaplin e Marx, é esta. A outra diferença é no conteúdo, obviamente: Chaplin nunca é corrosivo como Marx. A intenção (e portanto o conteúdo) de Chaplin é lírica, e a de Marx, sarcástica. Benigni coloca o lirismo de Chaplin nas respostas fulminantes de Marx.

Ele usa o humor como um canivete suíço, desses que têm trezentos e tantas "lâminas" e serve para todas as situações: Funciona como forma de vida, como forma de ver a vida, como ferramenta para conquistar mulheres, consolar velhos e brincar com crianças, serve como arma contra inimigos e como gazua para abrir as mais variadas portas. E serve para salvar vidas - menos a sua. Neste sentido, Benigni eleva o humor à categoria de qualidade humana máxima - quando aliado à ternura. Pois se o riso é o "herói" do filme, sua "heroína" é a ternura, ao lado do humor, o astro maior. É justamente por causa da ternura que o palhaço do filme mais comove do que faz rir. O riso que ele provoca vem molhado de lágrimas. É assim que se define o humor judaico, e não por acaso.

Mas no final das contas, o humor não é o herói no filme de Benigni. O herói é o amor, ou isso que chamei de ternura. Porque esse é o traço marcante na narrativa - o amor infinito do protagonista por seu filho e sua mulher. Um amor capaz de levá-lo a re-criar inteiramente uma dada realidade - e isso nada tem a ver com negá-la - para que o filho a ela possa sobreviver, e para que sua mulher não perca de todo a esperança. E sabemos da importância da esperança no contexto do holocausto. Lembram-se dos "muçulmanos"? (Termo aplicado, na linguagem dos campos de concentração, aos que desistiam de lutar pela sobrevivência, como se o seu destino já estivesse traçado, fazendo alusão à idéia islâmica do 'Maktub', que significa: "Tudo já está escrito".)

Peter Berger, o grande sociólogo, certa vez saiu em busca de provas de que existiriam na sociedade humana comportamentos espontâneos, não ensinados pela autoridade religiosa, que mostrariam que o homem se relaciona com a Transcendência independentemente de o terem instruído a esse respeito. Ele chegou à conclusão de que existem pelo menos seis comportamentos desse tipo.

Um deles, como exemplo, é o mais que universal desejo por uma vingança que transcende os limites da vida humana para crimes grandes demais: Em toda sociedade, mostra ele, encontra-se situações em que alguém teria cometido
atentados tão violentos contra a dignidade humana, que não parece suficiente um castigo aplicado aqui e agora. As pessoas ficam ansiando por algum tipo de castigo que dure um tempo infinito, a fim de que o sofrimento do criminoso seja tão longo e intenso quanto o de suas vítimas. (Na nossa época não faltariam exemplos desse tipo - e Hitler é só um deles).

Dois outros desses seis comportamentos têm diretamente a ver com o nosso filme.

Um deles é justamente o humor. O humor, diz Berger, consiste na maioria das vezes numa saída, numa abstração do aqui e agora, ou seja, numa espécie de "passeio" pela transcendência, no sentido de uma voltinha pelo "além e então".

Essa saída do aqui e agora caracteriza um relacionamento com a transcendência, com o que não faz parte do cotidiano, da vida no seu sentido imediato.

Outro dos comportamentos desse tipo, segundo Berger, é a capacidade que as mães têm de, numa cidade que está sendo bombardeada, tranqüilizar o seu filhinho e colocá-lo para dormir apesar de ela mesma estar sentindo um grande medo. Essa capacidade de "recriar" a realidade, diz o autor, também mostra um relacionamento com o transcendente, porque implica numa crença genuína por parte da mãe de que "amanhã estará tudo bem". Se não houvesse essa crença, a mãe não conseguir mentir para o filho a ponto de fazê-lo dormir. Sua ansiedade o contagiaria, e não adiantariam as meras palavras.

Vemos, então, que Benigni foi muito mais longe do que simplesmente fazer uma "comédia sobre o holocausto". A fim de perceber com clareza qual o elemento central do filme poderíamos ir retirando do mesmo faceta após faceta, para ver qual delas é essencial e quais delas são acessórias. Assim, não é fundamental que a história se passe num campo de concentração nazista. Poderia ocorrer em qualquer outra situação limite - e a humanidade teria sido bastante pródiga em fornecer-lhe cenários alternativos. Também não é fundamental que os personagens sejam judeus - aspecto aliás muito pouco enfatizado no filme. Também não seria essencial que o instrumento de recriação da realidade fosse o humor. Poderíamos imaginar um outro enredo, nem um pouco engraçado, em que o pai explica para o filho a situação vivida por ambos de um modo que o filho passe a vê-la de maneira inteiramente diferente. O que não pode ser retirado do filme é a ternura. O amor.

A preocupação em salvaguardar também a alma do menino, não só o seu corpo físico. Se esse elemento fosse retirado teríamos uma outra história, completamente diferente.

É por este motivo que afirmo: O humor não é o principal elemento do filme, e sim a ternura. Até que ponto a ternura é essencial para o crescimento emocionalmente saudável das crianças pequenas é algo que não vou discutir aqui. Basta afirmá-lo e aplaudir o filme. Palmas para o palhaço que ele merece.

 
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