igNóbel

Rabino Nilton Bonder


 

 

O conflito no Oriente Médio tem sido impiedoso com a moral do Ocidente. Quando a fervura passar vamos descobrir que mais do que imaginamos foi destruído. Há uma fratura exposta da diplomacia internacional revelando por trás de tribunais globais e justiças planetárias a velha e desconcertante face dos interesses econômicos. Não é apenas os Estados Unidos que joga esse jogo, há uma Europa latente de fascismo e de culpa por ser patrona não só da rixa israelo-palestina, mas também dos governos autoritários do Oriente Médio, dos conflitos entre Índia e Paquistão, das ditaduras que ainda hoje assombram a América Latina e do caos político e social da África.

Entre as vítimas morais está também um dos ícones do século XX -- o prêmio Nobel que andou dando sinais de perda de credibilidade. Uma possível repreensão da academia a Shimon Peres e a ameaça de retirar-lhe o prêmio da Paz, apenas revela o desconcerto de oferecer prêmios não por méritos de realização ou façanha, mas por expectativas baseadas em interesses políticos. Se Shimon Peres é visto como uma decepção em sua conduta política o que dizer de Arafat cujo envolvimento não é só político, mas claramente de incitação e de opção pela violência.

Em realidade a insistência de registrar o conflito israelense-palestino como fundamental à paz mundial não tem primordialmente a ver com violência desmedida, ou com desrespeitos aos direitos humanos, ou mesmo intolerância religiosa. A facilidade que tem a região de arrebatar manchetes e primeiras páginas infelizmente não tem a ver prioritariamente com o fator humano, mas econômico. Se o fator humano fosse preponderante, essas manchetes não deixariam de enfocar o continente africano e de lá viriam desproporcionalmente os prêmios Nobel da paz.

Contribuíram também para o mal estar destes últimos tempos as declarações e o texto escrito por outro Nobel, desta vez de literatura, José Saramago. Embebido de imagens bíblicas sobre Davi e Golias, Saramago não percebe que analogias bíblicas carregadas de simbolismo são o que menos o mundo precisa neste momento. São elas que tem ajudado a fomentar o ódio, principalmente quando utilizadas para descrever uma realidade do tipo "branco ou preto", ou de vilão e mocinho. Sem tons de cinzas ou outros matizes, aqueles que detém o dom da palavra se fazem imperialistas e sua inteligência uma forma de assalto.

Se Saramago tivesse consultado um bom hermeneuta teria entendido que se Davi soubesse da história de um Davi e Golias anterior a sua, teria muito provavelmente perdido a contenda. O mistério, a mágica, está em não se conhecer a história e o seu fim. Esse determinismo que existe em histórias já vividas não se adequa a realidade que é livre para não ter que reproduzir nenhum modelo. Conta-se que uma mulher estéril procurou um rabino implorando por uma bênção para que pudesse dar a luz. O rabino disse que não tinha esse poder, mas que lembrava de certa ocasião quando outra mulher o procurara com o mesmo pedido e lhe trouxera um livro de rezas de presente. No ano seguinte ela deu a luz a uma criança saudável. A mulher nem sequer pestanejou. Retirou-se e pouco tempo depois retornou com um livro de rezas para presentear ao rabino. O mesmo olhou-a com compaixão e revelou: "acho que você não entendeu... a outra mulher não conhecia esta história".

Toda a vez que queremos pegar carona na simbologia e na mágica de situações já vividas além de nos iludirmos, engessamos também nossa compreensão da realidade à parcialidade das analogias. Fazemos esta crueldade com pessoas, ao compará-las a modelos de bem ou de mal, e fazemos isso com povos aprisionando-os à superficialidade destes mitos mal-empregados.

Aliás, esta tem sido uma triste constatação em relação aos comentaristas desde 11 de setembro. Parece que Bin Laden (auxiliado pelo presidente Bush) conseguiu insuflar o mundo com uma simbologia que mais cabe em sermões do que em análises políticas.

Comentaristas políticos e acadêmicos produzem hoje prédicas inflamadas no mais clássico estilo fundamentalista sem o menor pudor. Está mais fácil encontrar religiosos moderados buscando uma linguagem distante dos paralelos e comparações simbólicas do que nos textos opinativos de jornalistas e comentaristas políticos.

Nenhum outro conflito precisa tanto do fim dos sermões. O Iraque já está lendo Jeremias para se envolver no conflito. O presidente da Síria já apelou para a acusação milenar de deicídio dos judeus. Há árabes e muçulmanos querendo partir para guerras apocalípticas, há fundamentalistas judeus colecionando passagens bíblicas que profetizam um futuro triunfal e há combatentes que se escondem na Igreja da Natividade. E por entre os versículos e as prédicas de baixa qualidade, costuram-se os interesses internacionais.

Quem usar desta nova retórica do século XXI marcada pelo simbólico é o reacionário de nossos tempos. E este é o terror deste novo século, ele vem por todos os lados. Vem da direita, vem da esquerda. Vem de quem viola os direitos humanos e de quem manipula os direitos humanos.

O prêmio Nobel da Paz deveria ser dado a pessoas altruístas e despojadas cujo trabalho é o somatório de um esforço de vida e não apenas o ato de assinar tratados que podem ser cumpridos ou descumpridos. Merecedores de prêmios Nobel da paz deveriam ser alguns ativistas palestinos e israelenses que nos últimos anos venceram a resistência de suas próprias comunidades e se arriscaram a sonhar com um futuro que seus líderes não conseguem trazer. Quanto aos de literatura, talvez devessem aprender que usar símbolos bíblicos em contextos políticos é fazer uso do nome de Deus, é homilia e não literatura.

 

 
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