JERUSALEM

Rabino Nilton Bonder


 

 

Com certeza não existe outro ícone maior da dificuldade de convivência humana do que a cidade de Jerusalém. Fundada há três mil anos pelo Rei David, possivelmente já então sobre um sítio sagrado arcaico da região, Jerusalém era um projeto. Seu nome o revelava: Ieru - shalem, a cidade da plenitude ou a cidade da paz. E o projeto deu certo. Não exatamente por ter trazido paz em sua Historia, muito pelo contrario, mas por ter sintetizado a dificuldade humana de obtê-la. Jerusalém se transformou em símbolo de triunfo e, se há algo que a paz não é.... é ser fruto do triunfo.

Em junho de 1967, poucos dias após a Guerra dos Seis Dias e a conquista da cidade velha de Jerusalém pelo exercito israelense, a figura política e a liderança mais proeminente do novo Estado de Israel, David Ben Gurion, recebia uma carta. Era de um relativamente desconhecido remetente, um rabino de nome Zalman Schachter. Em sua carta o rabino alertava para a grandeza histórica daquele momento. Após 18 séculos sem soberania sobre seu maior monumento, o Monte do Templo, plantado no coração da cidade velha, os judeus não só tinham acesso, mas também controle do local. Enquanto os judeus se emocionavam com as fotos de soldados rezando junto ao Muro das Lamentações, enquanto a experiência do maior exílio e dispersão da Historia humana parecia chegar ao fim com conotações messiânicas mesmo para a imprensa mundial, aquela carta trazia um conteúdo chocante. O rabino Zalman exortava a Ben Gurion que declarasse imediatamente Jerusalém como um monumento internacional e que permitisse à cidade, justamente em sua reconquista pelos judeus, a realização de seu projeto histórico - não o triunfo, mas a paz.

O argumento do rabino era no mínimo interessante. Ele dizia que o triunfo representava a mais efêmera das seguranças e usava da própria Historia dos judeus para mostrar que o triunfo dos Assírios, Gregos, Romanos, Bizantinos, Cruzados e Otomanos era uma metáfora recorrente de que o vencedor de hoje, é o derrotado de amanhã. Não pela força, mas pelo espírito -- para colocar nas palavras milenares dos profetas de Israel. Quem vence produz um vencido e se coloca na cadeia sucessiva e interminável da violência.

Talvez no furor e euforia de um povo que duas décadas antes estava sendo aniquilado em câmaras de gás, ficasse difícil não dar a esta carta o fim que provavelmente teve - o de ser ignorada. Mas ela continha algo merecedor de reflexão, particularmente hoje quando israelenses e palestinos colocam a paz como irredutível a um estado, seja de que lado for, sem Jerusalém como capital metáfora do triunfo.

Quem visita hoje Jerusalém encontra a cidade velha sob evidentes "controles" que se organizaram na prática. Os muçulmanos controlam a região das mesquitas, os judeus a região do Muro, os católicos as igrejas e seus monumentos santos, algo que se não é pacífico, não esta tão longe na pratica como nos corações. A pratica foi um interessante resultado de convívio e, obviamente, do estado de liberdade e democracia, que bem ou mal, o Estado de Israel, trouxe como novidade àquele canto do mundo. A solução com certeza passa por estes três ingredientes: o convívio, o estado de liberdade e o fim do triunfalismo. Algo muito diferente do que as lideranças de ambos os lados estão fazendo.

Jerusalém minha ou sua, votos pela internet para ver quem "ganha" e atitudes afins não aproximam ninguém de uma possível capital-metáfora da paz. Há uma profunda irresponsabilidade em colocar quem quer que seja na posição de "perder" Jerusalém.

Há profundos trabalhos de amadurecimento para o Ocidente e Meio-Oriente a serem realizados em torno de Jerusalém. Para os judeus há uma difícil auto-analise que não é apenas política mas teológica. Compreender o monoteísmo não apenas como a religião de um Deus único, mas de apenas um povo, é um ato de triunfalismo no século XXI. Para muçulmanos e cristãos o trabalho não é menos profundo e complexo. Passa pela mesma questão acrescida da reflexão de querer ser a legítima Israel (ou Ismael) ou a Nova-Israel na visão cristã. Foi este desejo de triunfo teológico que marcou as guerras entre cristãos e muçulmanos nos últimos dois milênios pela conquista de Jerusalém. Não apenas um triunfo político, mas teológico. E quando o triunfo é teológico e simbólico, então não se trata de saber com quem fica Jerusalém, mas quem fica com Deus. E aí as negociações passam a ser de ordem psicológica tendo como questão basica: Qual dos filhos Você gosta mais?

Não haverá paz enquanto ambos, ou melhor, todos os lados interessados não forem derrotados. Uma derrota na expectativa de triunfo de todos é a única esperança da paz. Sempre foi.

 

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