AMIGOS DA ESCOLA

Claudia Werneck


 

     

AMIGOS DA ESCOLA - Lembra Deles?

Amigos da escola são para sempre. Pelo menos, na memória afetiva. Dedicamos quase duas décadas de nossas vidas à rotina dos uniformes, deveres de casa, das provas ... E o que afinal fica dessa vivência quando nos tornamos adultos? Pouco do conteúdo aferido nos testes que nos davam a glória de passar de ano - ou não. Bastante das brincadeiras no recreio, das festas e das transgressões cometidas na hora da aula sem que o professor desconfiasse de nada.

Mas a melhor recordação da escola são os amigos. Ah, os amigos! Até hoje, aos 42 anos, lembro-me bem dos talentos e das limitações, e também das personalidades, daqueles que dividiram comigo, por um ano letivo, ou mais, a mesma classe. Se hoje eu fosse convidada a ser Ministro da Economia, por exemplo, saberia exatamente quem deles chamar para me assessorar em cada detalhe. Neste Ministério, gostaria que meu braço-direito fosse a Verônica. Ágil, empreendedora, estudiosa, uma financista nata. Poupava cada centavo ganho para comprar lanche na cantina, controlava a mesada como ninguém. O dinheiro dela dava para tudo. Jamais cedia a tentações de natureza consumista. Organizada, ai de quem alterasse a ordem dos livros e dos discos dela na estante de sua casa. Agora, eu jamais chamaria a Verônica para trabalhar comigo em uma situação que exigisse jogo de cintura, flexibilidade, domínio e prazer nas relações humanas. Seria um fiasco. Minha amiga tinha pavio curto. E ainda tem.

Gosto de recordar-me dos meus colegas do maternal ao vestibular. Posso revivê-los em detalhes. Deles tenho boas e más lembranças, o que é ótimo. Reflete o quanto a criança ou o adolescente, intuitivamente, se exercita e se articula eticamente no ambiente escolar. Desenvolve visão crítica. Mesmo os colegas menos chegados deixaram em mim certa marca. Lembro-me de quem lia bem, recortava ou desenhava mal, dos mais gulosos, ou desinibidos, da menina que ainda fazia xixi na calça mesmo grande, dos bons no esporte, daqueles que tinham o hábito de mentir, de não pagar o dinheiro pedido emprestado. E ainda de quem tinha asma e vivia perdendo prova. Ou tinha ferida na perna que nunca cicatrizava. Também do menino que se destacava no coral e no grupo de percussão e hoje é cantor lírico, soube recentemente. A menina que fumou o primeiro cigarro entre nós será para sempre uma espécie de heroí na marginal no meu coração. Havia outra que sabia tudo (errado) sobre sexo. Uma de minhas amigas tinha um namorado firme que morava em outra cidade e nunca o traiu. Revi recentemente a Nilda, que fazia as provas de matemática correndo e as entregava antes que eu começasse a ensaiar o primeiro dos cálculos, deixando-me com uma inesquecível sensação de ser muito, mas muito burra. Com detalhes recordo-me dos colegas cujos pais haviam morrido cedo. E daquela menina cuja avó usava a dentadura mais feia que eu já vira.

Conto tudo isso para pontuar que, mesmo sem ter revisto a maioria desses amigos, é viva a sensação de que o tempo todo estivemos juntos. E cada vez que, por um motivo ou outro, revejo algum, toco-me profundamente e me emociono tão imediatamente vem a lembrança do dia em que fomos parceiros em um trabalho de grupo ou trocamos cola em alguma prova. Das vezes em que eu podia ajudar. Das vezes em que eu precisava de ajuda. Somos e seremos cúmplices. Porque freqüentamos a mesma escola.

E as crianças da minha comunidade que não puderam estar na escola?

Que não foram convidadas a participar dessa festa?

Que referência tenho hoje delas?

Como sentir-me cúmplice de suas dificuldades e de seus sonhos?

De que jeito reconhecê-las como parte do meu TODOS afetivo? Do TODOS social, político, econômico, cultural e humano do meu País?

Escola, dizem os documentos internacionais de educação, deve ser o local de encontro universal de gerações. E resistamos à tentação de reduzir o significado do vocábulo universal. Universal quer dizer de TODOS. De TODOS, mesmo.

Criança que não vai a escola fica sem futuro. E não é apenas porque não se alfabetiza ou não tem acesso à educação. É porque, principalmente, deixa de fazer parte da memória afetiva e dos planos daqueles com quem vai dividir a responsabilidade de construir e dignificar sua nação. Instituições de ensino em que não cabem TODOS os tipos de alunos, incluindo aqueles com comprometimentos mental, sensorial, motor ou físico de qualquer natureza podem até ser muito boas, mas ainda não são escolas.

Claudia Werneck é jornalista e autora de vários livros sobre a inclusão de pessoas com deficiências e doenças crônicas na sociedade, entre eles o "Sociedade inclusiva. Quem cabe no seu TODOS?", lançado pela WVA Editora.


 

 
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