MUNDO DE APAIXONADOS E AMOROSOS

Rabino Nilton Bonder
JORNAL DO BRASIL - CADERNO B - 26/MAR/2004


 

 

O filme de Gibson não é maldoso, mas malicioso. A sutileza de suas colocações não deveria passar desapercebida mesmo do público que se emociona com cenas deste episódio que, mais do que a teologia de uma tradição, integra o inconsciente coletivo de todo o Ocidente.

Na proposta de reproduzir a versão mais apaixonada dos Evangelhos, Gibson acabou realizando um filme com nuances sádicas e perversas. Dissimulada na arte de focar detalhes, revela o fetiche comum aos fanáticos: transformar o detalhe em fundamento e o fundamento em detalhe.

A verdade é que o filme e seu diretor são uma profunda metáfora sobre o mundo de hoje e a mensagem de Jesus. Jesus era um ser amoroso e não um ser apaixonado. A paixão percebe a vida como uma rede de posses, traições, intrigas, violências e idolatrias. Lá entre os judeus (os únicos no cenário além dos órgãos de dominação e repressão romanos) haviam apaixonados e amorosos. Quer a versão dos Evangelhos na qual se baseia Gibson que os amorosos virariam cristãos e os apaixonados, responsáveis pelas violências, continuariam judeus. Não é bem assim.

O mundo hoje se divide entre os fundamentalistas (apaixonados) e os amorosos. Os fundamentalistas não são os muçulmanos. Os amorosos e apaixonados estão em qualquer grupamento humano. Há, por exemplo, muitos fundamentalistas apaixonados na América. Bush é um apaixonado e representa uma visão americana que não está na Nova York atacada, mas no Cinturão Bíblico do interior americano, que, apaixonado, tenta animar sua vidinha Dogville. E de lá surge Gibson que, tal como os fundamentalistas de todas as religiões, é um apaixonado por suas verdades. Fundamentalistas estes que estão prontos a grandes batalhas não por amor e nem sequer por ódio, mas por paixão.

Mel Gibson é um apaixonado. Sua obra é apaixonada. Partes da Igreja que não denunciam aspectos reacionários do filme, fazendo pouco do amoroso João 23, são nitidamente apaixonadas. A paixão já matou e continuará matando em nome do amor.

Jesus meu irmão de religião e meu companheiro de fé num ser humano amoroso: a arte do detalhe como fetiche e a arte da paixão como fanatismo de Mel Gibson, corrompem a essência de tua mensagem.

Perdoai-o porque, como crente, em meio a sua paixão, não sabe o que faz.

Já como homem de mídia, sabe muito bem.


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