Dois aspectos impediram o reconhecimento de um envolvimento dos judeus
na resistência à ditadura e a luta pela democratização
do Brasil como um fenômeno que diz respeito à história
judaica brasileira:
O primeiro aspecto é interno e se deve a composição
da comunidade.
Por representar um grupo minoritário que pode facilmente se tornar
alvo de regimes autoritários e estar dividida em diferentes matizes
de identificação política, as instituições
da comunidade procuraram se manter distante deste capítulo da história
dos judeus no país tratando a presença significativa de
ativistas judeus entre os que empreenderam resistência à
ditadura como algo aleatório, mais produto de seu pertencimento
a esferas sociais e intelectuais do que por efeito ou influência
de suas raízes históricas e culturais.
O segundo, é a desconfiança entre os próprios
militantes de que houvesse qualquer conexão entre sua origem e
suas convicções políticas. Seja por seu distanciamento
da prática judaica e/ou da própria comunidade judaica, seja
por sua percepção de que a comunidade judaica tinha interesses
conflitantes com a militância, seja por mágoas na omissão
de guarida nos momentos de repressão, salvo que muitos foram acobertados
ou auxiliados a sair do país por judeus ou entidades comunitárias,
essa conexão ficou silenciada ou mesmo reprimida.
Estamos realizando um shabat cuja intenção é
reconsiderar o primeiro aspecto.
Como não perceber padrões e contornos na adesão maciça
de judeus na Europa Oriental às causas socialistas e como evitar
estendê-las à realidade brasileira que consagrou termos como
"roites" (vermelhos) e que levou a fundação de
instituições tal como a ASA no Rio e a ICIB em São
Paulo?
A semelhança entre métodos e inspirações que
fundam masmorras inquisitórias, Campos de Concentração
e calabouços de tortura de toda a ordem é inquestionável.
Da mesma forma a determinação e a fidelidade a crenças
e valores também se origina em semelhanças. Foram elas que
unificaram neste século XX os militantes judeus por um mundo socialmente
mais justo, os partisans judeus na II Grande Guerra contra o nazi-fascismo,
e os que defenderam o direito de autodeterminação nacional
como solução para a opressão e os massacres perpetrados
contra seu povo.
Esse shabat não é um culto ao passado, mas o desejo
de compromissos com o futuro.
O judaísmo não vive só de sua tradição
e da preservação de valores absolutos, depende de rupturas
e evolução que integrem ao compromisso ético os novos
discernimentos e consciências que se desvelam de geração
em geração.
Não é apologia a matizes políticos ou a práticas
de militância, mas o reconhecimento do orgulho de que os filhos
não fogem à luta. Filhos que são brasileiros e judeus
e não se negaram ao Brasil. Filhos que em algum lugar souberam
ter uma coerência mais ampla do que talvez eles mesmos entendessem
e talvez mais ampla do que a comunidade de onde tem origem entenda. Filhos
que deixaram como legado ser fundamental lutar pela liberdade e que a
democracia é um bem do qual, como brasileiros e judeus, não
podemos prescindir.
Talvez a conexão mais impressionante esteja na convergência
a uma única frase de ordem:
"Nunca Mais!". Frase que se constrói de um humanismo
que se identifica com o sofrimento do próximo pela memória
milenar de que "estrangeiro" foste em Terras Estreitas.
Rabino Nilton Bonder
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