A TERRA QUE TE MOSTRAREI
JORNAL O GLOBO - PRIMEIRO CADERNO - OPINIÃO - 30 de maio de 2007


 

 

 

Completam-se 40 anos da ocupação israelense nos territórios. Em tempos bíblicos, esse teria sido um tempo suficiente para empossar uma nova geração e um novo olhar à Terra Prometida. Terra cuja demarcação em Gênesis não segue critérios geográficos, mas civilizatórios: "Sai-te da tua terra, da tua parentela e da tua cultura, para a terra que eu te mostrarei!" O desafio do patriarca é o rompimento com certo status quo representado pelo elo entre os recursos do presente e os potenciais do futuro. Mais do que nunca o espírito do patriarca-profeta se faz essencial.

Participei recentemente com um grupo da Universidade de Harvard de uma viagem pelo trajeto percorrido por Abraão desde a cidade de Haran, no centro-sul da Turquia, onde ouviu seu chamado de peregrinação, até a cidade de Hebron, lugar de sua sepultura. A empreitada fazia parte de um amplo projeto do departamento de negociação de conflitos de Harvard que se intitula "Caminhos de Abraão". A iniciativa busca criar um caminho de peregrinação no Oriente Médio semelhante ao de Santiago de Compostela com profundo significado às três tradições bíblicas do Ocidente e Meio-Oriente - o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Mais de mil quilômetros por entre Turquia, Síria, Líbano, Jordânia, Palestina e Israel refazem a jornada realizada há 4 mil anos pelo patriarca e sua família em direção "à terra que te mostrarei", segundo a promessa bíblica feita pelo Criador a Abraão.

Refazer essa caminhada trouxe profunda compreensão sobre as tensões e conflitos dessa região e, particularmente, sobre a visão original do patriarca. Abraão é o arquétipo da hospitalidade, do acolhimento e da tenda aberta em todas as laterais. Contrastando com fronteiras militarizadas e desconfiadas, com muros e check-points e com uma terra que não consegue acolher e que ocupa ou quer jogar ao mar, fica claro o desprendimento cultural que precisa acontecer para que verdadeiramente se tome posse desta "terra que te mostrarei". Terra que definitivamente ainda não foi mostrada a israelenses e palestinos.

Por bíblico, entenda-se a capacidade de olhar a política e a realidade com uma visão de transcendência, o que imbui a tudo de um significado coletivo e perene. Não só são passados 40 anos de um terrível estado de ocupação que avilta a herança abraâmica de Israel, como não foram suficientes para erradicar o discurso da vitória final e da expulsão definitiva que perverte a herança abraâmica dos palestinos.

Na simbologia numérica, a Guerra dos Seis Dias foi um marco. Tal como em seis dias o Criador fez toda e qualquer terra, nestes seis dias de guerra, dois novos status se tornaram uma realidade para a região. Israel ganhou não só a guerra, mas o reconhecimento tácito de que sua existência não era um fenômeno efêmero e erradicável. Ali se fez de fato o estabelecimento de um Estado que até então era vivido como um frágil enclave assombrado pela vociferação de seus inimigos. Ironicamente, nessa guerra se estabeleceu pela primeira vez a identidade política do povo palestino. Gaza não era mais um território de refugiados engolido pela soberania egípcia, e o mesmo acontecia com a Cisjordânia, uma sub-região da Jordânia. A ocupação israelense estabelecia pela primeira vez fronteiras concretas para a existência não só de seu Estado, mas de dois possíveis Estados para dois povos. A Guerra dos Seis Dias conquistou as fronteiras que até então não existiam para os dois Estados. Egito e Jordânia foram (con)vencidos do estabelecimento destas duas novas entidades no Oriente Médio - Israel e Palestina. Nenhuma das duas entidades era aceita até então por estes dois países. Seu convencimento se expressa na paz que realizaram não só com Israel, mas com essa nova realidade do Oriente Médio.

É chegado o momento de as maiorias silenciosas na Palestina e em Israel se mobilizarem para mostrar essa terra a seus radicais. A terra que lhes será mostrada não está numa outra geografia ou geopolítica, mas na capacidade de abrir os olhos no espírito de seu patriarca.

Conta-se que Abraão acolheu um hóspede e, enquanto lhe preparava uma refeição, o convidado fez comentários que revelaram ser ele um idólatra. Chocado com o que ouvia, o anfitrião cogitou negar a refeição ao infiel. Uma voz dos céus questionou Abraão: "Há 70 anos eu provejo três refeições diárias a este homem e nunca as condicionei à sua crença pessoal, e tu estás em dúvida quanto a oferecer-lhe uma única refeição!" Abraão caiu em si e, enquanto servia seu convidado, relatou-lhe o acontecido. O homem comentou então: "Num Deus desse eu até poderia acreditar!"

É essa tolerância que um dia abrirá os olhos e "mostrará" a terra. Não será uma terra de novas fronteiras, mas fronteiras que há muito já existem. Cada jovem israelense ou palestino sacrificado pela incapacidade de suas minorias radicais e militantes de ver o que já pode ser mostrado hoje representa a mais grave heresia à herança de seu patriarca comum. Essa nova terra não só transformará as fronteiras entre os povos, mas também o infiel às nossas convicções. E as religiões terão feito seu serviço de representar um Deus no qual até se possa acreditar!

NILTON BONDER é rabino e escritor