Com o recém-lançado O Sagrado, o rabino Nilton Bonder bate
de frente com os conselhos miraculosos da auto-ajuda e diz que encontrar
"o segredo" ou qualquer outra mágica para a vida não
dá conta das angústias. Para ele, o que vale é a
Lei da Tração em vez da Lei da Atração. E
saber que não, você não é especial. Leia a
entrevista
Laila Abou Mahmoud
Formado em engenharia mecânica pela Universidade de Columbia e
doutor em literatura hebraica pelo Jewish Theological Seminary, Nilton
Bonder é rabino e escritor prolífico. Autor de dezesseis
livros, entre eles A Alma Imoral, que foi sucesso de público em
sua adaptação ao teatro, em peça estrelada por Clarice
Niskier. Nessa, ele propunha discussões sobre traição,
pecado e dinheiro de forma provocadora.
Agora, em O Sagrado, Bonder bate de frente com as fórmulas fáceis
da auto-ajuda e rebate conceitos popularizados em um dos maiores sucessos
recentes do gênero, o livro O Segredo. A "Lei de Atração"
de O Segredo vira "Lei de Tração" e o lema "seja
especial" vira "saiba que você não é especial".
Não querer acumular cada vez mais, ter menos desejos e se sentir
parte de um projeto maior são outras das principais diretrizes
que sugere em seu livro.
ÉPOCA conversou com esse rabino que não tem medo de ser
popular nem de ultrapassar os terrenos de uma sinagoga.
ÉPOCA - Onde está o "segredo" da vida?
Nilton Bonder - O segredo é a chave mágica que as pessoas
querem para dar conta de suas angústias e desafios. É uma
fantasia que poderia até ser lúdica, como um conto de fadas
para adultos. O preocupante - e a razão de ter escrito este livro
- é que a magia e a mágica no mundo infantil podem ser misturadas.
No mundo adulto, no entanto, misturá-las é um problema.
O que para um estimula a imaginação, para o outro pode ser
um fetiche, um truque para não viver a sua vida.
ÉPOCA - Procurar um "segredo" é uma fonte
de problemas para a vida?
Bonder - Se o segredo for a chave para contemplar o meu desejo infantil,
de consumo imediato, sim. Porque ele pode estar reforçando a mesma
causa de tantas de nossas angústias e vazios. O bem-estar não
é o resultado do atendimento de minhas vontades diante de um universo
que funciona como um gênio da lâmpada. O bem-estar é
fruto de se estar no lugar certo, na condição certa em relação
a nossa vida. A formiga tem bem estar quando é formiga, o cavalo
tem bem estar quando é cavalo. O ser humano tem que buscar bem-estar
em ser a si mesmo.
ÉPOCA - E o "segredo do segredo"?
Bonder - Vivemos num mundo de grande competitividade e solidão
e as pessoas estão ávidas por encontrar um sentido em suas
vidas que as tornem relevantes entre bilhões de criaturas num universo
de dimensões telescópicas. Daí o sucesso de livros
que basicamente dizem que você é especial e que o universo
está a seu serviço. O "segredo do segredo" é
que você é especial, mas não porque o universo está
a seu serviço. Ao contrário: é porque você
está a serviço do universo. Essa inversão faz toda
a diferença, mesmo que a proposta inicial seja a mesma.
ÉPOCA - Como é possível atingir esse "segredo
do segredo"?
Bonder - Eu uso esta expressão "segredo do segredo"
como uma metáfora. Não estou propondo um outro segredo (o
meu). Há um conhecimento milenar que trafega entre Oriente e Ocidente,
nos mais diferentes temperos e matizes, e que nos auxilia na percepção
mais fidedigna da realidade, distante de nossas ilusões e delírios.
Mas ela não é uma mágica, um manual de como fazer.
Ela nos inicia à magia deste universo e nos aponta caminhos. O
caminho certamente não é o de que o universo conspira para
mim, o epicentro da realidade; mas, ao contrário, eu é que
conspiro para o universo. É quando estou neste lugar e me sinto
bem e usufruo de bem-estar e bem-ser.
ÉPOCA - O senhor acredita que as religiões fazem parte
dessa busca pelo bem-viver?
Bonder - A espiritualidade é uma condição humana.
Buscar formas de celebrar e ritualizar a vida nos ajudam a perceber que
somos parte de um projeto, de que não somos o fim, mas um meio.
Deus, o Criador e Mantenedor do universo, tem como função
maior desbancar o meu ego do centro da realidade. Por isso, Deus na medida
correta (não uma idolatria, onde o meu Deus simplesmente é
o meu ego dissimulado de crença em mim mesmo) é saudável
e próximo da realidade. Digo próximo porque todos tendemos
a distorcer o que seria Deus, por conta de nosso ego. Mas se a espiritualidade
vira um produto, o que muitas vezes as religiões fazem, tal como
"O Segredo", querendo vender privilégios neste ou noutro
mundo, perde por completo este potencial sagrado.
ÉPOCA - O senhor afirma que a capacidade de auto-engano do
ser humano é espantosa. O que o senhor acha sobre a literatura
de auto-ajuda, de uma forma geral?
Bonder - Muito da auto-ajuda é baseada no auto-engano. Vende.
Mas isso não quer dizer que o esforço milenar do ser humano,
de tribos e tradições, para ensinar seus descendentes sobre
o sagrado da vida não seja importante. Eu me dedico a esses ensinamentos
e eles são profundamente belos. Eles não resolvem ou servem
como um manual de como ser feliz e como dar certo. Quando declaramos que
o objetivo não é ficar "mais", mas ser parte,
as coisas mudam de eixo e qualidade. Tudo que promete no título
tem grande chance de fazer parte do mercado de auto-engano.
ÉPOCA - Os livros de auto-ajuda ensinam regras para ser feliz
e bem-sucedido. Contudo, a religião também estabelece regras.
Onde estaria a diferença entre os sistemas de regras da auto-ajuda
e da religião?
Bonder - Como disse, dependendo da maneira como a religião
apresenta sua mensagem, ela não se diferencia em nada. Mas há
uma diferença quando as práticas não são de
suborno: eu faço isso e ganho aquilo. A verdadeira tradição
é aquela que leva à humildade, a encontrar seu lugar, seu
cantinho do universo. Não precisa ser com vista para o mar, mas
o meu cantinho que me é próprio. Deste lugar que é
meu, sou grande, sou especial, porque faço parte de um projeto
fantástico que não está baseado na minha biografia,
mas no meu pertencimento à vida, à Arvore da Vida.
ÉPOCA - O senhor é autor de 16 livros, parte deles best-sellers.
O senhor não tem receio de também ser considerado um escritor
de auto-ajuda?
Bonder - Meus livros são uma extensão de meu trabalho
como rabino. Estou constantemente falando para as pessoas, pregando. Mas
para não me perder achando que sou fonte de qualquer sabedoria,
falo sempre para mim. As pessoas às vezes me dizem, quando falo
algo que as toca, que eu fiz isso para elas. Não, não fiz.
Fiz para mim. O dedo em riste é sempre para mim. Quanto mais verdadeira
for a percepção de minhas limitações e dificuldades,
mais real será o que digo. Sim, meu lugar é bastante estranho.
Mas como não falo do lugar do saber, e sim de um lugar do viver,
e como uso de uma tradição de sagrado, me percebo íntegro.
E aí está tudo bem.
ÉPOCA - O que o senhor acha da "Lei de Atração",
popularizada em livros como "O segredo"? Em que ela difere da
"Lei da Tração", que o senhor propõe no
livro?
Bonder - No livro digo que há uma lei da Tração,
e não da Atração. Para o livro O Segredo, você
pode pedir ao universo que ele lhe atenderá. Portanto, você
pode atrair tudo. O que há na realidade é o desejo humano
de tração, de arrastar tudo para si. Esse é o caminho
contrário do sagrado, que é feito de servir, e não
de controlar.
ÉPOCA - O senhor fala em modificar o mundo e se aproximar da
magia sem recorrer à mágica. De que forma isso é
possível?
Bonder - Aí é que entra o sagrado. Sagrado é
o caminho que nos leva a querer ser parte. O sagrado acontece em comunidade,
em pertencimento. O sagrado acontece nas raízes, sejam ancestrais
ou de descendentes. O sagrado acontece na comunhão com a natureza
e com o tempo. Nestes caminhos há a descoberta de algo muito especial
em mim, mas que não é pessoal, que não é o
meu ego. Estamos diante de um maravilhamento radical, totalmente mágico
sem ter que recorrer a mágicas e truques. Esta em nós, como
diz o texto bíblico: nem além mar, nem nas alturas, mas
aqui bem perto, no próprio ser.
ÉPOCA - O senhor afirma também que é preciso
ter menos desejos. Por quê? Eles não podem ser positivos?
Bonder - Desejo é tudo de bom, é como a fragrância
de uma flor ou o gosto de um fruto. Mas o desejo é um artifício
da vida para cumprir uma função que não é
o próprio desejo. Não estamos aqui para saciar desejos por
cem anos e morrer. Essa construção de nossa civilização
nos leva a um beco sem saída. A vida é boa e vão
tirá-la de nós. A juventude é prazerosa e irão
roubá-la de nós. O "ser" na condição
humana, na qual temos a faculdade da consciência, é a administração
desses desejos para que eles cumpram sua função. Não
para que nós sejamos uma função dele. Sexo é
uma manifestação sagrada da vida, mas se eu persigo o sexo
como um segredo para dar conta de ansiedades e temores, para resolver
minha existência, facilmente ele se tornará pornografia.
Todos nós do século XXI conhecemos isso. E todos que já
viveram conheceram isso. Faça do seu desejo um produto, algo que
você persegue de forma utilitária, para obter controle sobre
satisfação e sofrimento, e o sagrado se fará pior
do que profano e mesmo o mais belo e singelo se fará sujo e perverso.
ÉPOCA - O senhor conta a experiência do desconcerto quando
foi chamado por um colega rabino de "o melhor judeu do Brasil".
As pessoas, na sua concepção, não deveriam tentar
ser as melhores no que fazem? O que pode ter de errado em querer ser "o
melhor" ou ser "especial"?
Bonder - O melhor é uma miragem. Parece que só existe
lugar para um. Há melhores e primeiros que não se sentem
felizes e décimos quintos ou milionésimos que vivem em serenidade.
A integridade é que deveria nos levar a fazer tudo com qualidade,
com a maior qualidade possível. Mas isso é feito porque
não existe razão de não fazer desta maneira. A natureza
se esmera em fazer o melhor, mas não para subir no pódio
e se ver em comparação ao outro. Acho que o melhor é
uma forma de controlar a morte, a finitude. Se sou melhor que o outro
ou que todos, talvez eu me faça entre os humanos um deus. A intenção
modifica totalmente a qualidade de uma conduta. Ser especial por integridade
é sagrado, ser especial como forma superlativa é um segredo.
ÉPOCA - O senhor afirma que não há nada pior
que perder seu Deus. Não há como manter a esperança
e a crença em valores bons e éticos mesmo fora de um sistema
religioso específico?
Bonder - Perder Deus para mim não tem a ver com religião.
Perder Deus é perder uma conversa interna. Deus é uma referência
interna distinta do meu eu. É o contraponto, a crítica,
o olhar sobre mim mesmo que a consciência me permite. Esse Deus
em mim, imanente, em algum lugar se conecta com o Deus epicentro da realidade
total. Perder Deus é sucumbir a si como o centro de tudo, de que
somos nós mesmo o projeto. Aí nossos dons, nossa sensibilidade
e nossas faculdades se tornam distorcidas. E a lucidez da consciência
se faz uma miragem. A realidade se reflete em tantos espelhos que passamos
a viver de reflexos. E nada mais triste do que alguém que é
um reflexo.
ÉPOCA - O que o senhor acha desse fenômeno de livros
como o de Christopher Hitchens (Deus não é Grande), que
pregam a inexistência de Deus?
Bonder - O sagrado pode ser profanado, não há dúvida.
Deus pode e foi usado para as maiores aberrações e crueldades.
Mas quem não é grande sou eu e o Christopher. O ser humano
não é grande. E isso não é um problema. Só
é um problema para quem quer ser grande. O ser humano, dos primeiros
capítulos de Gênesis até hoje, tem em si o conflito
entre a Árvore da Sabedoria e a Árvore da Vida. O saber
não dá conta da vida. Faz ver a vida, distinguir a vida.
Deve ser usado para o maravilhamento e não para o controle. Maravilhar-se
é sagrado, controlar é o segredo.
ÉPOCA - O que lhe permite fazer projetos é se sentir
parte de um projeto maior, o senhor diz em seu livro. Perdemos essa dimensão,
que o senhor chama "transpessoal"?
Bonder - Sim, perdemos muito da vida comunitária. O individualismo
tem suas recompensas, mas não somos indivíduos. Somos parte
de uma espécie e esta, parte de um projeto da vida. Podemos nos
vestir de doutor, cobrir nossa pele com terno e gravata para esconder
o primata em nós. Mas não dá para viver a vida sem
estar nessa pele. Então, não somos tão pessoais quanto
achamos que somos. Parte da solidão da vida moderna é que
vemos a vida como minha. Sou eu que vivo a minha vida, e quando eu morrer,
sou eu que morro. Mas essa não é a realidade em si. A vida
é vivida através de mim e, quando eu morro, cumpri uma função
em vida que está para além de minha pessoa. Sem entender
isso, sem fazer disso parte de nossa existência, o caminho é
de confusão e desesperança.
ÉPOCA - Como resgatar essa dimensão transpessoal?
Bonder - Acho que temos que reencontrar caminhos ao sagrado. Fazer
sem buscar recompensas, estudar sem querer sapiência, existir sem
ser só para mim mesmo, mas sem esquecer de viver por mim, estes
são os caminhos.
Olhos
O segredo do segredo é que você é especial, mas não
porque o universo está a seu serviço. Ao contrário:
é porque você está a serviço do universo. Essa
inversão faz toda a diferença mesmo que a proposta inicial
seja a mesma.
O sagrado pode ser profanado, não há dúvida. Deus
pode e foi usado para as maiores aberrações e crueldades.
Mas quem não é grande sou eu e o Christopher (Hitchens).
Neste mundo saturado de produtos, talvez alguém que não
consuma seja um ser mais elevado. Esse consumo tem impactos graves na
perda de nosso sagrado.
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