"CONTRA O "QUERER É PODER"
JORNAL O GLOBO - PROSA E VERSO - 29.12.07


 

 
 

Obra de Bonder critica 'O Segredo' e idéia de que o cosmos deve nos servir

Luiz Paulo Horta

Um livro está na moda: "O Segredo", de Rhonda Byrne. Transformado em DVD, ele corre mundo ainda mais rapidamente. Qual é a sua mensagem? A de que há um "segredo" que é a própria estrutura íntima do universo. Desvendado esse mistério, você estará em condições de realizar todos os seus desejos.

O rabino Nilton Bonder, líder de uma das comunidades judaicas do Rio de Janeiro, e autor de "A alma imoral", estava fazendo uma viagem pela Palestina, a convite da Universidade de Harvard, quando teve acesso ao DVD de "O Segredo". Ele ficou preocupado com o que viu, e dessa preocupação surgiu "O Sagrado". Para o rabino, "O Segredo" mistura aspectos bastante refinados e grosseiros num mesmo pacote, "o que, em geral, abre caminho para muita confusão".

"O livro reedita, em pleno século XXI, uma disputa milenar entre o sagrado e a visão mágica de um segredo", diz o rabino. "O sagrado é a tentativa de religar o ser humano a algo maior do que ele mesmo, e que lhe permita resgatar-se como parte do projeto da vida, da Árvore da Vida. O segredo, por sua vez, quer capacitar o ser humano como um deus, alguém que, no comando, determina a realidade através do seu desejo".

Um conflito velho como o mundo, diz o rabino

É um conflito velho como o mundo. Nilton Bonder ilustra esse conflito, em "O Sagrado", com a história de Balac e Balaão, que aparece no livro dos "Números", da Bíblia. Israel está entrando pela Palestina, vindo do Sinai, e chega às planícies de Moab. O rei de Moab, Balac, chama o adivinho Balaão para que ele amaldiçoe essa raça de invasores. Mas, em vez de fazer o que o rei pede, Balaão acaba por abençoar os israelenses. O poder da magia tinha sido derrotado por uma força exterior aos desejos de Balac e do próprio Balaão.

A tese de "O Segredo" parece às vezes (ou é) um discurso de marketing. Diz um dos "mestres" citados pelo livro: "Nós podemos ter qualquer coisa que escolhermos. Não me importo com o tamanho do desafio. Em que tipo de casa você quer morar? Quer ser milionário? Que tipo de negócio quer ter? Quer mais sucesso? O que você realmente quer?".

O livro diz que tudo é possível a quem tiver acesso à lei básica do universo. Que lei é essa? A lei da atração. "Tudo o que entra na sua vida é você quem atrai, por meio das imagens que mantém em sua mente. Você é o que você está pensando. Você atrai para si o que estiver se passando em sua mente".

Como diz o rabino Bonder, o problema dessa abordagem é que ela mistura alhos com bugalhos. Se estamos falando da "força do pensamento positivo", isso não é nem novo nem controvertido. Funciona - talvez não no nível que o livro promete. Mas respeitáveis tradições orientais ensinam: "você é aquilo que você pensa". A contextura do seu "mental" condiciona a sua vida.

Onde é que as coisas se misturam? É no achar que, qualquer que seja o rumo por você escolhido, o resultado é igualmente bom.

O pensamento mágico se presta a todas as ilusões. É uma das formas mais arcaicas de mentalidade religiosa. Você descobre, por exemplo, um talismã - algo que confere poder. Ou entra numa forma de entendimento pessoal com o seu deus, de modo que ele atenda aos seus desejos.

Em "O Segredo", não há deuses: há uma espécie de força impessoal que ninguém sabe de onde vem: "A lei começa nos primórdios do tempo. Ela sempre existiu e sempre existirá. É a lei que determina a completa ordem do Universo, cada momento de sua vida. Não importa quem você é ou onde está: a todo-poderosa lei da atração dá forma a toda a sua experiência de vida, ao ser posta em ação pelos seus pensamentos".

Ingenuidade perigosa, fruto de uma mente inculta

É o que o rabino Bonder chama de "uma nova mitologia em formação", uma alegoria do nosso próprio tempo: o cosmos como um vasto mecanismo cuja última finalidade é atender aos nossos desejos, mesmo que eles surjam sob a forma de um consumismo desenfreado.

No fundo, é uma ingenuidade muito grande, e perigosa. É o produto de uma mente inculta (bem contemporânea) que ignora a literatura universal. Os velhos gregos já tinham os seus mitos apontando para a ambivalência dos desejos. Mestres mais modernos trataram do assunto de maneira antológica. Basta ver os avarentos de Balzac, ou de Moliãre. Sim, eles transformaram suas vidas num imenso desejo; pensaram nisso o tempo todo, como recomenda "O Segredo"; e conseguiram o que queriam. Tornaram-se ricos; mas, dentro deles, a alma apodreceu.

A ideologia moderna que assusta o rabino Bonder é a do individualismo exacerbado. Um de seus subprodutos (bem americano) é a transformação das pessoas em vencedores e perdedores. Os vencedores terão cada vez mais; os perdedores, cada vez menos. Mas os vencedores estarão fechados em si mesmos, como máquinas de guerra. Terá valido a pena?

Em oposição a essas novas mitologias, pode-se lembrar de figuras como Martin Buber, grande filósofo judeu do século XX. Em sua obra-prima, "Ich und Du" ("Eu e Tu"), ele fala do ser humano como um ser relacional - que nasce e cresce com a vocação do diálogo. Esse diálogo pode levar ao plano do Sagrado. Mas, se não há diálogo, o céu tende a se transformar em inferno.