"HOLOCAUSTO E CARNAVAL"- UMA
REFLEXÃO |
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Estamos todos no "arrepio" dos eventos relativos à comunidade e o carnaval. Escrevi um artigo que não enviei aos órgãos de imprensa para não desautorizar instituições comunitárias. Mas acho que o momento exige reflexão interna além dos arrepios. Sei também que momentos polêmicos são os mais difíceis para refletirmos. Se não for para refletir, se for para entrar no plano do "sim" ou "não", do bonzinho e do bandido... então....como diziam bons rabinos do passado.... Ehhh....fargues! Nilton Bonder
Holocausto e Carnaval Há polêmicas que se produzem entre um certo e um errado. Há, porém, polêmicas entre dois certos e polêmicas
entre dois errados. A atual polêmica sobre o carro alegórico da Viradouro me
parece uma dessas entre dois errados. E se isso já é muito complicado, saiba que há polêmicas
onde o erro é em relação ao outro, mas há
polêmicas também onde um é errado em relação
a si mesmo. No meu julgamento estamos diante de uma polêmica entre
dois errados para consigo mesmos. A comunidade judaica se vê legitimamente responsável pela
preservação da memória das vítimas do Holocausto.
Empreende essa tarefa num mundo de revisionismo histórico e negação
sobre um dos episódios mais bem documentados da História
da civilização. Documentado não apenas na carne de
vítimas ainda vivas, mas pela própria perversidade de seus
perpetradores que registraram seus atos ensandecidos por lhes atribuir
valores às avessas. Revisionismo esse que é usado como arma
política por países como o Irã ou como munição
de ódio por grupos racistas. Em meio a tudo isso é indiscutível
a legitimidade e a necessidade desta vigilância, mas também
a maneira de exercê-la. É motivo de discussão hoje se os judeus deveriam carrear
para si essa tarefa tornando-a uma causa de sua História particular
ou se tal responsabilidade deveria ser no mínimo repartida com
uma Europa que internamente se perceba promotora e culpada destes acontecimentos.
Uma coisa é a cobrança externa, o dedo em riste e outra
é a difícil e visceral crítica interna -- uma responde
pela reparação e a outra pelo remorso e contrição.
Discussão profunda e difícil, mas aponta uma questão
importante para a comunidade judaica. Seu policiamento, na medida em que
tiver que se dar, está condicionado a não se exceder, sob
o risco de obliterar processos próprios de autoconsciência
da civilização e que elevam o Holocausto a um símbolo
universal, a uma iniqüidade contra a humanidade e não apenas
contra os judeus. O claro divisor de águas está na motivação
e na intenção de representar o Holocausto - seja querendo
revê-lo e, portanto reduzi-lo, seja acolhendo-o como memória
universal e promovendo contrição. Num mundo tão iconográfico
e onde imperam valores de liberdade será impossível exercer
este papel de vigilância sem que ele seja descaracterizado e compreendido
como um papel autocentrado, que por um lado rouba a universalidade de
um tema e por outro representa uma agenda particular de um grupo ao invés
da humanidade como um todo. O contexto do carnaval e dos enredos das Escolas
de Samba não é aos olhos e corações brasileiros
uma passarela profana, mas uma agenda popular e pluralista que muito interessa
nutrir. Se a intenção for certa, a impropriedade ou o grotesco
serão sempre riscos que acredito valha a pena correr para que estas
questões não fiquem prisioneiras de espaços blindados
pelo politicamente-correto. Estes espaços além de reduzidos
e elitistas tem a mesma motivação do fundamentalismo islâmico
que quer controlar o olhar que o outro tem sobre aquilo que lhe é
sagrado. No meu ver um erro para consigo. Por outro lado os carnavalescos desejosos de trazer ao público
temas com conteúdo humano e de conscientização devem
fazer uma profunda análise sobre sua intenção na
combinação entre conteúdo e forma. Se o carnaval
quer apenas se utilizar de temas fortes e impactantes para dar cor a suas
alegorias se tornará uma extensão do mundo do marketing
sensacionalista e da exploração da essência pela forma.
Deixará suas raízes de criatividade e humanidade para aderir
ao magnético efeito da mídia e da propaganda a qualquer
custo. Até porque a maior das alegorias do Carnaval não
é a fantasia vã, nascida do desejo unicamente estético.
O Carnaval esconde a dor e ao mesmo tempo o sonho de um povo pobre, escravizado
e marginalizado. Esconde no glamour questões que emanam da luta
milenar humana por um mundo mais igualitário, onde a fantasia de
um não tenha que ser a de vestir-se do outro porque como excluído
só pode ser a si se for o outro. Mas um mundo onde todos sejamos
reis, onde o respeito se alastre como epidemia, e todo o mortal, todo
o trabalhador humilde, descubra em si uma alegria que o faz folião
desta vida. Aí seremos reis e rainhas, pierrôs e colombinas,
não de um mundo de fantasias que deságua numa quarta-feira
de ainda tanta desigualdade e intolerância. Aí o mundo poderá
ser esta alegoria de uma vida que é uma passarela por onde desfila
a alegria e a diversidade. Não há polemica entre a Comunidade Judaica e o Carnaval. Há questões internas muito importantes para serem amadurecidas. Será deste amadurecimento que não teremos que nos refugiar em fantasias; dele advirá a possibilidade de que horrores como o do Holocausto deixem a todos verdadeiramente arrepiados. Rabino Nilton Bonder |