DIÁLOGO NECESSÁRIO

ESTADO DE MINAS | CADERNO DE CULTURA | 17.05. 2012

 

A filósofa e romancista Marcia Tiburi e o rabino e escritor Nilton Bonder falam de arte e pensamento, antecipando encontro que será realizado na Bienal do Livro em 20/05/2012.

João Paulo

Filosofia, religião, ciência, arte e literatura. O homem não se cansa de buscar o sentido da existência e, na maioria das vezes, acaba percebendo que o melhor são mesmo as perguntas. Por isso, cada vez mais, o dogmatismo vem sendo deixado de lado em troca da ampliação de referências e do diálogo. Nesse trajeto, pensadores e artistas parecem se encontrar no meio do caminho de suas dúvidas. É, então, hora de uma boa conversa. É o que promete a sessão de amanhã, às 17h, do Café Literário, dentro da programação da Bienal do Livro, no Expominas, em Belo Horizonte.
No painel, a filósofa e romancista Marcia Tiburi conversa com o rabino e escritor Nilton Bonder. Autores com livros publicados em vários gêneros, do ensaio à ficção, Marcia e Nilton parecem ter alguns pontos em comum, sobretudo na abertura à diferença e na tolerância com a diversidade e as ideias. A ancoragem religiosa de Nilton Bonder em nenhum momento se abriga no dogmatismo nem perde de vista a salutar arte de contar histórias. Já Marcia Tiburi, mesmo vinda do rigor da vida acadêmica, vem intercalando ensaios e romances de ideias, sem deixar de lado as oportunidades de ocupar a arena pública e os meios de comunicação, como desafio à democratização do pensamento.
Em entrevistas ao Pensar, Marcia e Nilton falam de religião, filosofia, literatura, tecnologia, feminismo e teatro. Enfim, falam da vida. Um aperitivo para o encontro marcado de amanhã

Entrevista/Nilton Bonder

"O pensamento é lírico"

1) Como tem sido sua experiência de diálogo com outras religiões?

Sempre tive grande apreciação por outras tradições. Por prezar a minha, reconheço o valor de todas. Em meu livro "Tirando os Sapatos" falo sobre a necessidade de tirarmos as "toxinas" da identidade. Toda adesão a um grupo de pessoas ou pensamento cria barreiras e distância da humanidade como um todo. Há riqueza e grandeza nas identidades, mas elas têm que ser constantemente resgatadas pelo ato de colocarmos nossos pés descalços na terra. Os sapatos representam o lugar que se amolda a nossos pés, onde nos sentimos seguros e certos.
Mas dialogar com as religiões às vezes é difícil porque inconscientemente elas disputam e nem sempre conseguem transcender a tolerância para um lugar de apreciação.

2) Qual foi sua maior aprendizagem nessa trajetória?

Descobrir que o outro, apesar de "outro" é um igual. Descrevo neste livro um momento em que na fronteira da Síria (local onde Abraão ouviu o chamado de Deus para seguir para a Terra Prometida) um menino me perguntou se eu conhecia a história de Abraão. Por curiosidade disse a ele que não conhecia muito bem. Ele então me falou que o patriarca tinha duas mulheres: uma oficial e a outra uma serva, sendo a primeira Hagar (mãe de Ishmael) e a segunda Sara (mãe de Isaque). E que Sara foi expulsa com seu filho Isaque deixando para Hagar e Ismael lugares na família e na História. Exatamente ao inverso do texto bíblico. Nesse momento pude entender e sentir o que é ser o filho bastardo, o não aceito pelo pai e expulso. Nunca tinha me dado conta de que o que minha tradição fala diz respeito a um outro e como este outro escuta esta narrativa. Ser filho ilegítimo não é uma boa sensação e só quando me fiz outro para alguém que entendi como trato o outro.

3) O judaísmo é uma fonte de sabedoria, mas também de dúvida. O senhor acredita que esse é um bom método para enfrentar os dilemas contemporâneos, resgatar a origem sem se aferrar no dogma?

A fonte maior da espiritualidade não é a certeza, mas a verdade. A verdade demanda constantemente revisão e auditoria em nossos pensamentos. Mas a desconstrução ou a revisão de conceitos não é a dúvida, é o contrário da dúvida. Quando não nos sentimos inseguros em nossa busca espiritual não ficamos apenas a mercê do discernimento. A prática maior da espiritualidade é justamente o compromisso, o oposto do discernimento. As pessoas, no entanto, acham que o compromisso é uma forma de corporativismo, de proteger os interesses de sua "igreja". Acredito tanto na essência benigna e sapiencial de minha tradição que não a vejo ameaçada quando algum dado histórico é contestado ou alguma revisão em posturas do passado se faz necessária. Meu compromisso é ancestral, coletivo e de busca e ele nunca é ferido pela verdade, muito pelo contrário, se fortalece. Dogmas muitas vezes refletem insegurança.

4) Sua obra propõe uma pesquisa em torno de valores, exigindo sempre muito do indivíduo. A verdade, hoje, passa necessariamente pela consciência individual?

Entendemos o mundo por uma linguagem individual. Mas por esta linguagem ele parece não fazer sentido porque a vida ele não tem nada a ver com meu indivíduo. Sou eu que pertenço e que estou disponibilizado à vida, e não ao contrário. Todos nós iremos aprender sobre a vida porque a "morte" (o viver em direção a morte) é um mestre impecável e irá nos poupar de ensinar-nos a todos o que é a realidade. Mas podemos antecipar esta sabedoria que só o futuro revelará pela espiritualidade e transcendendo a força gravitacional do indivíduo que me habita. Se fizermos isso pela sabedoria e espiritualidade, podemos viver a vida com mais qualidade e dignidade e podemos machucar e nos machucar muito menos neste processo de existir.

5) Suas fontes, além da religião e da filosofia, são histórias e narrativas literárias populares e eruditas. Qual o papel que a literatura pode exercer no mundo de hoje?

As pessoas só aprendem por histórias. Mesmo as lições mais impactantes de nossas vidas foram vividas na moldura de uma história, ou de um caso. O pensamento é muito mais lírico do que imaginamos. Ele detesta e se cansa com rapidez pelo racionalismo. Pensamos literariamente e estamos sempre a contar historinhas em nossas mentes até quando calculamos uma operação matemática. Então parábolas e situações humanas nos colocam no epicentro afetivo dos acontecimentos. Nunca apenas pensamos como uma atividade mental, estamos sempre vivendo e experimentando.

6) Como foi a experiência de ver seu livro A alma imoral no palco? Pensa em trabalhar outra experiência para o palco, cinema ou romance?

A experiência foi maravilhosa porque meu encontro com a Clarice foi mais do que uma parceria de trabalho. Tivemos uma sintonia em pensamento e trabalhamos com uma integridade e comunhão como nunca tinha experimentado numa dimensão de trabalho. Foi um encontro mágico e os dois fizemos o que tinha que ser feito de forma intuitiva e deu no resultado que deu. As pessoas vêem isso no trabalho e na nudez da peça. Não foi apenas uma nudez cênica, mas uma transparência e idoneidade plena que caracterizaram este trabalho.
Tenho muita vontade de tornar meu último livro, Segundas Intenções, numa versão teatral porque ele é um reverso da Alma Imoral e convida sombras que a Alma produz para que sejam acolhidas ao invés de rejeitadas. É quase como uma resposta profunda da Dona Leia, do personagem reacionário que aparece no texto da peça. Adoro resgatar os vilões em papel de mocinhos. Ajuda a perceber a diversidade e grandeza da vida.

7) Como um homem ligado à religião do livro, como o senhor acompanha o debate em torno das novas tecnologias?

Eu amo novas tecnologias. Tecnologias são formas de fazer e o fazer modifica a experiência. É claro, o novo, como tudo na vida, contempla perdas. A vida não se furta em descartar o que já foi gostoso, o que já foi incrível, o que já foi jovem. Então não temos como nos apegar ao fazer do passado. Sua poética e sua idiossincrasia são sempre perdidas para o tempo. Mas o tempo faz e ao fazer produz o futuro que é diferente do passado. Estou louco para ler o livro que será tele transportado para meu cérebro. Tenho certeza que vou chorar e rir mesmo diante daquilo que será feito de forma muito diferente. Temos que renovar o antigo e santificar o novo constantemente para termos memória e futuro.

8) Depois da cabala da comida, do dinheiro e da inveja, pensa em levar esse modelo de interrogação do mundo a outra de nossas obsessões contemporâneas (beleza, fama ou egoísmo).

Não. Já fui tentado por editoras para fazer a Cabala do Amor e coisas do gênero. Não quero explorar um nicho comercial. Escrevi os três livros porque era uma trilogia em torno da máxima Talmúdica de que "nos conhecemos através de nosso bolso, nosso copo e nossa ira". Bolso virou "dinheiro", copo virou "comida" e ira virou "inveja". Meu interesse estava centrado nesses três pilares sensuais da vida: a materialidade, o corpo e o poder. Deles obtemos os maiores prazeres e deles advém nossos maiores erros e equívocos. Conhecer-se a si mesmo é distinguir de dentro do prazer o pecado e vice-versa e fazer escolhas.

Nilton Bonder, rabino e escritor
Autor de Portais secretos, A alma imoral, O sagrado, Tirando os sapatos, Segundas intenções, A cabala da comida, A cabala do dinheiro e A cabala da inveja.