AUTOVIOLÊNCIA FOLHA DE SÃO PAULO | TENDÊNCIAS/DEBATES
- OPINIÃO - 14.04.2013 |
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O que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e
senhoras como bichos ao volante. Dão vazão a violências
que fora do carro não dariam A palavra automóvel, uma viatura com mobilidade própria,
pode ser enganosa. Tem autonomia de potência, mas não tem,
pelo menos até hoje, autonomia de condução. Quem conduz um automóvel é uma consciência. O
que talvez seja mais reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a
característica maior da consciência: tudo que por ela é
gerido regressa a ela mesma, num efeito bumerangue, impactando e determinando
quem ela é. O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente,
detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e
meu nome. Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de
susto e de breve recusa em assumir-se a autoria. O carro faz parecer que existia outro personagem que não o
próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar
o personagem e o Renavam não pode esconder a habilitação.
O insulfilm não tem como mascarar o rosto e o deslocamento não
tem como deixar para trás o que foi feito. Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no
meio da rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do
outro. Porque acelerar em direção a um pedestre é
como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque
estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado.
Porque ultrapassar perigosamente é como sair armado. Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência
que conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre
com a intenção de matar. O auto de automóvel nos
engana a todos e a maioria é pior como motorista do que como cidadão.
Tem mais pecados registrados nas fiscalizações eletrônicas,
e mais ainda quando elas não estão por perto, do que na
vida de pedestre. Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de
que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro
do que fora dessa entidade. O condutor é uma consciência e uma consciência
é um bicho vestido. As sensações de anonimato e de
que o pequeno espaço de nossa carroceria é privado fazem
o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o que vemos
pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos
atrelados a um volante. Dão vazão a violências que fora, vestidos, não
dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos
seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências.
Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro
de sua casa, de sua alma, marcas de pneus. Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou
a subida de uma ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça
e se pôs a andar ao lado do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude,
ao que ele explicou que na subida ficava difícil para o animal.
O cocheiro reagiu: "Mas é apenas um animal... Então
o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e ficar
cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou
um ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com
um cavalo!". O condutor é aquele que enxerga as interações
e cuida não só para fazer o seu percurso, mas também
para não se ver no futuro em litígios com animais, seja
na vida real ou em sua própria consciência.
NILTON BONDER, 54, rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de "A Alma Imoral", entre outros. |