MILÊNIO E SHABAT

Rabino Nilton Bonder


 

 

O dia 31 de Dezembro deste último ano do milênio no calendário ocidental ocorre numa Sexta-feira à noite, quando começa o shabat para a tradição judaica.

Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção inspirado no descanso divino no sétimo dia da Criação. Muito além de uma proposta trabalhista já conquistada em grande parte das sociedades do planeta, shabat entende a pausa como fundamental para a saúde de tudo que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente; onde o meio-ambiente e a terra imploram por uma folga, uma pausa; onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo - shabat é uma necessidade do planeta. A terra, Gaia, nós e nossas famílias precisamos da pausa que revigora. Prazer, vitalidade e criatividade dependem destas pausas que estamos negligenciando.

Hoje o tempo de "pausa" é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações para não nos ocuparmos. A própria palavra "entretenimento" indica o desejo de não parar. É a busca de algo que nos distraia para que não possamos estar totalmente presentes. Estamos cansados mesmo quando descansados. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a industria do entretenimento só pode crescer nestas condições.

Nossas cidades se parecem arquitetonicamente cada vez mais com a Disneylândia e o tipo de emoções que buscamos, também. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas.

Fim de um dia com gosto de vazio; um divertido que não é nem ruim nem bom. Dia pronto para ser esquecido não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Estamos entrando o milênio num mundo que é um grande shopping. A internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas de Ocidente e Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim.

Hoje não se consegue parar a não ser que seja no fim. Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. Os olhos não têm muito tempo para ver e recorrem à memória para recuperar o que a retina apreendera. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente.

As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado, a noite de penumbra e o simples de uma lipo.

Nossos artistas só sabem fazer instalações - dispor para funcionar. Nossos namorados querem "ficar", trocando o "ser" pelo "estar".

Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XX - um dia seremos nossos. Do escambo por carinho e tempo, evoluímos para a compra de carinho e tempo. Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco.

Nunca corremos tanto e deixamos tanto inacabado. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é uma interrupção. Mas isto nos parece difícil de entender. E assim o sol não pára de nascer e a semana de acabar. O mês passa rápido - menos que o salário - mas quando se viu o ano já passou. Do jeito que estamos, não tarda muito, o milênio já foi.

Shabat é pausa. O dia de não se trabalhar não é o dia de distrair - literalmente "tornar desatento".

É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que se fazem as famílias no descanso -- "o que vamos fazer hoje?" -- é marcada por ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

O tempo por não existir faz mal a quem quer controla-lo. Quem "ganha tempo", por definição perde. Quem "mata tempo", se fere mortalmente. E este é o grande "radical livre" que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do tempo uma mercadoria, um artigo.

Em tempos de milênio temos que resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada.

A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que mesmo que o Criador descansou? Talvez porque mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

 

 
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